Eles também são pessoas / They're people too

Uma coisa que eu aprendi com a mudança, é de que estamos errados em muitas coisas. Mudar-se é basicamente aceitar que você está errado com frequência e dispôr-se a mudar!

Como você já sabe, eu não passei na prova do KIT em setembro/2018. Depois de uma troca de emails com o pessoal da coordenação que já tinha me ajudado anteriormente, descobri que poderia me increver para uma curso de matemática pré-faculdade: obviamente me inscrevi, e as aulas começaram no meio de outubro/2018. Esse post, entretanto, não é sobre isso.

Vamos ao que interessa:
No segundo dia de aula do curso, conheci a Henna*. Ela entrou na sala e, enquanto escolhia um lugar, sorri para ela, que, após 5 segundos de hesitação, sorriu de volta e escolheu o lugar ao meu lado. Em alguns minutos de conversa eu já percebi que seríamos amigas. Conforme os dias de aula passavam, conversávamos mais e eu descobria detalhes sobre a vida dela: ela veio do Afeganistão, tem uma família maior do que a minha, gosta de ler, fala persa, quer cursar Informática... e foi acolhida pelo governo alemão como refugiada. Quando ela me contou sobe a saída do Afeganistão e vinda para a Alemanha, foi como um soco no estômago. De repente, todas as notícias que eu já vira sobre refugiados na Europa passaram na minha mente, e eu não conseguia acreditar que os terrores que eu ouvi nos jornais brasileiros fossem uma realidade tão perto da minha, vividos pela minha nova e encantadora amiga afegã. Eu não sabia como reagir: não sabia se chorava, se a abraçava, se deveria responder algo ou ficar em silêncio; porque minha cabeça zunia pensando "naqueles refugiados na Europa" que, tantas vezes, eu vira na TV e sentira compaixão, mas que estavam tão longe de mim...

Em uma das vezes que eu contava sobre a Henna para os meus pais, minha mãe falou "nossa, às vezes a gente esquece que são pessoas normais, como a gente, lá nesses países, né?"; e, caramba, como a minha mãe tem razão: presos no nosso mundo, insensíveis às notícias terríveis que vemos todos os dias, esquecemos que o Afeganistão tem pessoas, a Síria tem pessoas, Omã tem pessoas, o Equador tem pessoas, Moçambique tem pessoas, Uganda tem pessoas, Israel tem pessoas, a Palestina tem pessoas...
Enquanto a Henna me contava sobre o seu país e a sua família, tantas vezes parecia que ela falava do meu país e da minha família! Frequentemente eu me pegava dizendo "sério??? No Brasil é igualzinho!", "vocês também? A gente sempre faz isso na minha família!" e sentia-me tão identificada com ela que eu nunca diria que o Brasil e o Afeganistão ficam em lados opostos do globo.

A Henna, porém, foi só uma parte do processo de tirar os óculos da realidade que eu conhecia para conhecer uma totalmente nova.

Em uma das minhas idas e vindas do curso de matemática para casa (quase uma hora de viagem), conheci Lina, uma moça sentada ao meu lado no trem. Ela escrevia concentrada em um caderno, e fiquei observando-a atentamente, ao que ela, meio sem graça, perguntou se eu entendia árabe. "Não,", respondi, "só acho a escrita muito bonita. As palavras parecem desenhos!". Ela riu, e começamos a conversar mais: ela voltava de uma entrevista de emprego em outra cidade; perguntei sobre a área de trabalho. Descobri que ela largou a faculdade de medicina na Síria por causa da guerra para vir à Alemanha, e que ela queria muito na trabalhar na área de turismo aqui. "Meu sonho era ser aeromoça,", disse, um pouco chateada, "mas as companhias aéreas não permitem que eu use o lenço na cabeça"; nesse momento, uma parte do meu coração se partiu: eu não fazia ideia de que muçulmanas não podem ser comissárias de voo! Por fim, ela também me contou que já era casada e com filhos, e conversamos um pouco sobre nossas famílias.
Nesse dia, saí do trem novamente chocada com as diferentes realidades que se encontravam ao meu lado, muito feliz e com as mãos cheirosas - Lina passou um perfume árabe na minha mão para que eu sentisse o cheiro e, sinceramente, o arrependimento de não ter tirado uma foto do vidrinho nunca vai passar! Hahaha

O que dizer então, do super simpático tutor de matemática do curso que virou meu amigo? Omar cursa Informática no KIT e era o responsável pelas "aulas de reforço" de matemática. Começamos a conversar mais, e adivinhem só? Ele também fala árabe (qualquer idioma ocidental vira fichinha perto do que meus novos amigos falam, gente hahaha) e também veio da Síria. A sua família está espalhada em vários países, e ele também me contou sobre a realidade pré- e pós-guerra. É muito difícil pensar que tudo isso (a guerra) ainda é uma realidade em 2019 e que meus bisavós passaram pelas mesmas coisas há alguns anos. É muito difícil pensar que uma pessoa "normal", assim como eu, que gosta de matemática, que teve um bichinho de estimação, que gosta de ler, que visitou a praia, ou qualquer outra coisa que normalmente fizemos ou fazemos na vida, já tenha tido que passar pela realidade da guerra.

Acho que eu poderia escrever um livro sobre o assunto, porque nem falei dos meus outros amigos:
Carlos e David, do Equador, que me fizeram perceber que não conheço nem mesmo a realidade da América do Sul direito! Apesar de eu já ter mais realidades em comum com eles do que com outros - eles sempre me fazem rir com memes e entendem minhas brincadeiras (brincar não é o forte dos alemães...). Ah, claro, o Portunhol também ajuda muito nas conversas quando não sabemos as expressões em alemão!
Berdi, o menino do Turcomenistão, que é sempre gentil e engraçado, além de inteligente. Quando eu pensava no Turcomenistão antes de conhecê-lo, gente? Nunca! Era só "um dos países lá que termina em ÃO" ou o país com T no jogo de Stop. Agora, entretanto, eu sei que as pessoas de lá falam turcomeno, que eles tem comidas que parecem muito boas (hahaha) e que a ditadura lá, infelizmente, está quase tão ruim quanto na Coreia do Norte.
Na minha sala do Studienkolleg também tem gente da Indonésia, Índia, China, Egito, Armênia, Coreia do Sul, Irã, Vietnã...

E assim, querido leitor, a cada dia mais, eu aprendo quanto eu estava errada ao enxergar apenas a minha realidade. A cada dia mais, deixo de ver estereótipos e vejo pessoas, sentimentos, sonhos, sorrisos!
Estudar com tantos estrangeiros é uma realidade incrível, e fico muito feliz de estar nela - no fundo, queria que todo mundo pudesse ter uma experiência assim na vida!


Por fim, para você que faz piadinhas sobre refugiados, muçulmanos, estrangeiros ou "afins": cuidado com o que você fala, principalmente se eu estiver por perto. Se antes eu já achava esse tipo de "brincadeira" uma imensurável falta de noção, agora elas são uma ofensa pessoal aos meus amigos! E ninguém é cruel com os meus amigos, sabe? #ficaadica

*Nome alterado para proteger a história da minha amiga :-)

______________________________________

English version for my foreign friends (hopefully correct)

One thing I've learned from the moving is that we're wrong about a lot of things. Moving is basically accepting that you are often wrong and being willing to change!

As you already know, I did not pass the KIT exam in September/2018. After an email correspondence with the coordination staff who had already helped me before, I discovered that I could enroll for a pre-college math course: obviously I enrolled, and classes started in the middle of October/2018. This post, however, is not about that.

Let's get to the point:
On the second day of class, I met Henna*. She entered the room and, while she was choosing a place, I smiled at her, who, after 5 seconds of hesitation, smiled back and chose the place beside me. In a few minutes of conversation, I realized that we would be friends. As the class days passed, we talked more and I discovered details about her life: she came from Afghanistan, has a bigger family than mine, likes to read, speaks Persian, wants to study Computer Science... and was welcomed by the German government as a refugee. When she told me about her departure from Afghanistan and her arrival in Germany, it was like a punch in the stomach. Suddenly, all the news I had seen about refugees in Europe passed through my mind, and I could not believe that the terrors I heard in Brazilian newspapers were a reality so close to mine, lived by my new and charming Afghan friend. I didn't know how to react: I didn't know if I cried, if I hugged her, if I should answer something or be silent; because my head buzzed thinking "about those refugees in Europe" who, so often, I had seen on TV and felt compassion, but who were so far away from me...

In one of the times that I told my parents about Henna, my mother said "gee, sometimes we forget that they are normal people, like us, there in those countries, right?"; and, damn, since my mother is right: imprisoned in our world, insensitive to the terrible news we see every day, we forget that Afghanistan has people, Syria has people, Oman has people, Ecuador has people, Mozambique has people, Uganda has people, Israel has people, Palestine has people...

While Henna told me about her country and her family, it often seemed as if she was talking about my country and my family! I often found myself saying, "Really? In Brazil it's the same", "you too? We always do that in my family" and I felt so identified with her that I would never say that Brazil and Afghanistan are on opposite sides of the globe.

Henna, however, was only one part of the process of taking the glasses out of the reality I knew in order to get to know a totally new one.

On one of my trips home from the math course (almost an hour's drive), I met Lina, a girl sitting next to me on the train. She was writing concentrated in a notebook, and I watched her attentively, so she, a little shy, asked if I understood Arabic. "No," I replied, "I just find the writing very beautiful. The words are like drawings". She laughed, and we started talking more: she was coming back from a job interview in another city; I asked about the work area. I found out that she quit medical school in Syria because of the war to come to Germany, and that she really wanted to work in tourism here. "My dream was to be a stewardess," she said, a little upset, "but the airlines won't let me wear my veil"; at that moment, a part of my heart broke: I had no idea that Muslims can't be flight attendants! Finally, she also told me that she was already married and had children, and we talked a little bit about our families.
On that day, I left the train again shocked by the different realities that were beside me, very happy and with perfumed hands - Lina put an Arab perfume on my hand so that I could smell it and, sincerely, the regret of not having taken a picture of the little glass will never pass! Hahaha

And what about the super nice math tutor from the course who became my friend? Omar is a Computer Science student at KIT and was responsible for math tutoring. We started talking more, and guess what? He also speaks Arabic (any Western language becomes very easy close to what my new friends speak, hahaha) and also came from Syria. His family is spread across several countries, and he also told me about the pre- and post-war reality. It is very difficult to think that all this (the war) is still a reality in 2019 and that my great-grandfathers went through the same things a few years ago. It's very hard to think that a "normal" person, like me, who likes math, who had a pet, who likes to read, who visited the beach, or anything else that we normally do in life, has had to go through the reality of war.

I think I could write a book on the subject because I didn't even mention my other friends:

Carlos and David, from Ecuador, who made me realize that I don't even know the reality of South America right! Although I already have more realities in common with them than with others - they always make me laugh with memes and understand my jokes. Ah, of course, Portunhol also helps a lot in conversations when we don't know the expressions in German!

Berdi, the boy from Turkmenistan, who is always kind and funny, as well as intelligent. When I was thinking about Turkmenistan before I met him, people? Never! It was just "one of the countries there that end in AN" or the country with T in the Stop Game (it's a words game in Brazil). Now, however, I know that the people there speak Turkmen, that they have foods that look very good (hahaha) and that the dictatorship there, unfortunately, is almost as bad as in North Korea.
In my Studienkolleg class, there are also people from Indonesia, India, China, Egypt, Armenia, South Korea, Iran, Vietnam...

And so, dear reader, every day more, I learn how wrong I was when I saw only my reality. Every day more, I stop seeing stereotypes and I see people, feelings, dreams, smiles!
Studying with so many foreigners is an incredible reality, and I am very happy to be in it - deep down, I wish everyone could have such an experience in life!


Finally, for you who make jokes about refugees, Muslims, foreigners or alike: be careful what you say, especially if I'm around. If I used to think that kind of "joke" was an immeasurable lack of awareness, now it's a personal offense to my friends! And nobody is cruel to my friends, you know?

*Name changed to protect my friend :-)





Comentários

Postagens mais visitadas